Francisco Flavio R. Viana

“Nossa luta deve ser solidária, tolerante e aberta a todos os que combatem a discriminação e o racismo. Invariavelmente, encontramos companheiros brancos e negros nessa mesma batalha. Nós não queremos construir uma sociedade de negros contra brancos, ou vice-versa, mas uma sociedade de todos” (Abdias do Nascimento)

Para não começarmos da maneira errada: 20 de novembro é a data em que devemos celebrar, de dentro para fora, a resistência, a persistência e a força negras. Nossa Consciência existe, também, para os outros 364 dias do ano.  A data, que marca a morte de Zumbi dos Palmares, é simbólica.

Não celebrar é, no mínimo, a tentativa frustrada de tornar pequena essa luta. Não é para menos; afinal, segundo o IBGE, cerca de 52% da população brasileira é formada por Pretos e Pardos. Mas não vou ficar aqui apresentando os dados que apenas reforçam algumas ideias; vou deixá-los de lado por enquanto.

Façamos um exercício básico: você viu a televisão hoje? Suponha que tenha começado a vê-la às sete da manhã, quando começam os comerciais de café da manhã. Não vi uma única família preta tomando o seu desjejum; inclusive, as que ali aparecem provavelmente o fazem porque a mãe de outra família levantou na madrugada, embarcou no típico transporte público no qual ficou por duas ou três horas, preparou tudo, e somente assim, o sorriso do comercial pode parecer mais branco.

O noticiário matinal começa. O apresentador, como todos já sabem, expõe, de maneira inequívoca, as barbáries semanais, crimes envolvendo os pobres (três em cada quatro são negros). Nos bastidores os comentários e atitudes racistas aparecem, formam subliminarmente opiniões. Notícias de sucesso e “superação” também aparecem, ou seja, sobre aqueles que “venceram” na vida; segundo o próprio IBGE, uma em cada dez é negra. É óbvio que não será esta a que aparece na TV.

Esta é a grande questão – a representatividade. A população preta não aparece! A segunda maior população negra do mundo! O país com maior parcela da população negra, a Nigéria, tem cerca de 170 milhões de negros; enquanto que o Brasil tem uma população negra em torno dos 101 milhões! Essa população você não vê em comerciais, pois ela é invisível; ela aparece apenas nas chacinas, pois são as maiores vítimas.

Economicamente, existe uma saída; afinal, pensemos nos 101 milhões de possíveis consumidores, já que somos uma nação de consumidores, não de cidadãos. Deve ser algo a considerar, não acha? Mas empurrar essa massa para as margens tem sido a prática mais constante, com o braço do Estado cometendo genocídio do jovem negro.

Este empurrãozinho para a marginalidade começa com o sucateamento da escola pública, já que é lá que nossas crianças passarão a grande parte de seu dia. Estrutura bem pensada por quem alimenta este sistema. A merenda é de baixa qualidade. Professores têm baixas remunerações, apanham da polícia por defenderem seus direitos e o futuro de nossas crianças. Mas tudo bem, pois três em cada quatro moradores das periferias são negros; logo, o futuro de seus filhos será podado na raiz, ou seja, na educação.

Provavelmente este ou esta jovem, com baixa instrução formal, já que o certificado de ensino médio não lhe garantirá condições para o ingresso na universidade, irá compor o enorme exército de reserva de mão de obra. Com formação precária, esse exército ajuda a baixar o preço da força de trabalho, mantendo a maioria dos trabalhadores negros à margem.

Zumbi, que também foi Francisco, teve sua cabeça arrancada e pendurada, por dias, em praça pública. Os senhores queriam mostrar que o líder negro não era imortal, mas não conseguiram. Zumbi vive até hoje em cada negro e cada negra que bravamente resiste, inclusive à nova onda conservadora e racista, que tenta destruir o pouco que foi conquistado nas últimas décadas. Novas lideranças e pensadores são formados, esclarecimentos e empoderamentos são cultivados.

Penso sempre sobre tudo isso, me preocupa muito. Tenho duas filhas; penso em como fomentar o empoderamento delas para que não se tornem mais presas desse sistema opressivo. Em minhas buscas encontrei o livro Entre o mundo e eu, de Ta-Nehisi Coates, jornalista e escritor, filho de integrantes de movimentos negros dos EUA. Nele, o autor compartilha com o filho adolescente sobre sua consciência do que é ser negro na América, do que é habitar um corpo negro e viver dentro dele.

Confesso, depois que li o livro, penso nessa realidade diariamente. Olho o rosto de minha mãe, vejo o rosto da realidade brasileira: mulher, preta, que criou sozinha os filhos. Penso na falta de oportunidades. Todos sabem, sou defensor das cotas em universidades públicas. É o mínimo que deve ser feito para tornar menos desequilibrado este cenário.

Muitos dos pensadores negros e negras são ceifados academicamente.  Não citarei nomes, mas percebo, nenhuma ajuda das agências de fomentos às pesquisas. Isso os norte-americanos resolveram melhor, e olha que a polícia por lá também tem o hábito de assassinar jovens negros. Mas lá o Neil deGrasse Tyson apronta algumas poucas e boas, quem daria borrachada em um dos maiores astrofísicos da atualidade?

Algo nos parece certo: lutar, pelos mínimos detalhes, é a única opção. Resistir e organizar a luta para tentar mudar a dramática realidade de um país desigual, racista e hipócrita, apesar de ter uma população predominantemente preta. Ainda temos o sorriso, e como dizia Dona Ivone Lara: “um sorriso negro traz felicidade; negra é a raiz da liberdade”.

Cursinho da Poli

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